12 de agosto de 2018

Nem Cravo, Nem Canela. Flor de Graxa do Malhado.


Nasceu grapiúna a morena do mar, que aqui no Malhado, na rua do Amparo, se tornou moça linda. Era uma graça a donzela que caminhava na orla ao vento da brisa de todas as tardes.
Ali de olho no píer, sentia que o mundo lhe seria uma soma de esquinas. Desde menina se imaginava a domar a natureza esquisita da vida e tomar o seu rumo a essa tão desejada liberdade. Moleca humilde de família simples, ganhou no batismo a alcunha da beleza; daquela beleza safada que subia nos telhados fazendo os homens subirem nas paredes; a beleza que Amado registrou em prosa, numa saborosa narrativa que ela só iria descobrir na adolescência. E diga-se, escondida da família, por intermédio de uma Sophia, amiga de colégio.
Gabi, como era citada nas conversas escolares, era moça pacata, discreta, apesar das curvas e das mechas. Tinha a cintura e a anca de uma preta brasileira, o cabelo e o olhar de cabocla que espreita do mato. Mas era seu delicado tratar inocente que causava o sobressalto. Desprendida de preconceitos, tinha a todos um carinho inocente que consumia toda gente que com ela transitava. Era doce e suave. Sem alarde se instalava no afeto e nos desejos que nos registros não correspondia.
Certo dia foi questionada o porquê de tanto pudor, se o deus que lhe havia dado os tão belos atributos foi para os ter em proveito no amor. Ela, não intimidada, disse apenas ao senhor que lhe interrompia na longa caminhada ao centro, que o amor que em si guardava tinha limite para uso e contraindicação para idosos. Fez o boteco ferver em resenhas, e o velho gaiato secar o pote.
Mas seu dote foi por várias vezes negociado, sem sucesso é bom que se entenda. Gabriela não era uma prenda ao seu próprio olhar, mas a família religiosa e fervorosa na “lei de crente”, sentia que já ‘tava’ na hora de uma semente para em nome do altíssimo louvar. Os ‘irmãos’ se achegavam como quem ia ler um salmo, e as mãos safadas tocavam suas pernas no sofá tentando um salto, que era sempre desajeitadamente desconvidado com um sono repentino. E os pais faziam a sala, para os homens e meninos, enquanto Gabi sonhava distante das regras.
Ela ia pro quarto, ouvir o barulho do mar e o cheiro de maresia com óleo. Ali em seus devaneios sentia que do píer viria o seu resgate. A flor de graxa do Malhado seria retirada por outros cantos, a outros mundos.
A cravo e canela dos anos 90, mulher já sedenta por saber, não estava disposta aos desmandos ‘coronéicos’. Não via na casa um abrigo, não tinha um amigo desejo, nem de um beijo seu se podia dar conta. Se morresse cedo, morria virgem, num pecado sem precedentes, por não fazer feliz uma gente qualquer das ilhéus do redentor.
Certo dia, já mulher criada, gostosa e sozinha, conheceu o seu próprio Nacib para insatisfação geral da nação. Australiana da Gold Coast, Mary Alli se achegou no Cururupe, com sua prancha de surf e cabelo enrolado numa cera ‘invocada’. Não tomou prosa da agitação que Gabriela causava, e tomou foi a própria Gabriela pra si. ‘Tascou-lhe’ um beijo de língua na surpresa, a praia lotada ficou em choque. Era tempo de rock, mas tocava o Morango do Nordeste na rádio local, e ali sem passar o tempo e a beleza menina da terra da jaca, se entregou aos delírios da carne. Ela que nunca fez um quibe, demonstrou muito apetite pelo afrodisíaco degustar das ostras. E foi ser da outra, contra todas as pregações, injúrias e pragas rogadas por seu povo.
Subiu no lombo de um avião na pista do próprio Jorge, o aeroporto, e fez sua peregrinação a outro canto. Sem espanto, até hoje não retornou. Descobriu a liberdade de pensar diferente em um diferente mundo, e por falta de assunto se isolou da terra verde. Perdeu o enterro do pai desgostoso, não viu a mãe se casar de novo com um catador de coco das praias do norte. Aparentemente nem deus a perdoou, pois sempre que se diz da flor de graxa, da outra cravo e canela, um saudosismo de suas pernas faz tremer as pernas outras, inclusive as minhas, que presenciaram de camarote diversas homenagens. Não foi feita pra homens tolos, nem pra vida seca com o cheiro da lama do Almada na baixa.
Gabriela agora é dona moça. Leva seu nome em um restaurante de frutos do mar no pacífico distante, mas elegantemente não se furta em revelar que o fogo de paixão que a língua de Alli lhe deu é um pecado seu que está super disposta a pagar. Sem neuras e sem dramas, assim feliz na cama já lhe é suficiente. Ela se deu o mundo, e o mundo lhe fez gozar.
De lá do telhado, sobre a pipa da vida, ela assiste distante o nosso caminhar.