um romance hipotético a respeito do pensamento humano
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.I.
Há milênios atrás em uma determinada região desconhecida do mundo surgiu uma aldeia onde os homens viviam das ações primitivas como a caça. Todos os aldeões eram igualmente responsáveis pela manutenção da rotina e pelo progresso que se instalava em seus modos de vida.
Percebendo da capacidade de produzir, o homem resolveu utilizar do seu conhecimento sobre a natureza para interferir nos ciclos dos vegetais, assim surgiu o ato de cultivar. Essa atitude provocou a observação e interesse nos outros grupos que percebiam a mudança no comportamento daqueles humanos que agora já não viviam reféns das estações, e estavam promovendo uma mudança no ambiente onde se encontravam instalado.
A necessidade de fortalecimento do homem se deu através da união dos interesses. Os seres daquele grupo já não eram nômades e o seu comportamento para com os mesmo de outros grupos também não era hostil. Aos poucos, baseados na coletividade das atividades foram se formando novos grupamentos em torno das primeiras casas. O que antes parecia uma vila familiar passou a incorporar outros homens que habitavam a região de maneira isolada, e isso foi alimentando a rotina local com outros costumes, contudo a busca pela sobrevivência coletiva ainda era o principal objetivo.
Enquanto aprendiam a controlar os ciclos das plantações adequadamente os aldeões perceberam que também era possível fazer uso dos animais de maneira consciente. Passaram a criar animais pequenos que serviam de comida, e depois animais maiores para as ações do cultivo e outras atividades.
A sociedade se formava de maneira promissora, até que começaram a surgir os primeiros conflitos de convivência. Um dos motivos para o problema se deu justamente no momento em que os homens não tiveram mais que se deslocar para caçar. Agora que estavam todos ali no mesmo ambiente, e que já não eram parte de uma mesma família, não se conseguia chegar num consenso em quais atividades cada homem assumiria como de sua responsabilidade. Ninguém se sujeitava a realizar ações menores, pois isso acarretaria em um desrespeito social.
Como não havia hierarquia familiar não existia um comando natural, e não fazia parte do ideal de sobrevivência o desapego ao egoísmo, os homens daquele novo grupo, resultado das uniões de progresso, não se permitiam assumir papel inferior nas ações da rotina.
Desse modo cada homem tomou pra si a idéia de realizar por conta própria às ações que acreditavam ser de sua competência. Isso provocou uma desestruturação da sociedade. Todos cultivavam o mesmo alimento, todos criavam os mesmo animais, e todos realizavam as mesmas ações na aldeia. Agora cada um vivia a vida pra si, e o grupo era apenas uma questão de geografia em meio à selva que a cercava.
Veio a primavera, o verão, o outono e no inverno tudo que havia se construído naquele pequeno espaço do globo se desfazia feito espuma no mar. Os homens solos rejeitaram o pensamento coletivo. Nada parecia capaz de uni-los novamente até que em uma noite de frio e neblina algo de muito estranho aconteceu.
.II.
Na noite da loucura, ouviam-se gritos e sussurros pelas frestas das portas. Pela janela era possível ver sombras passearem pelo campo em torno do vilarejo
Um aldeão de certa idade, membro de uma das casas mais simples da aldeia trouxe a mensagem que os membros precisavam escutar. Naquela noite um ser das profundezas da alma terrestre havia se irritado com tamanha fraqueza humana e resolveu eliminar os irmãos que estivessem em desacordo com os princípios. Esse ser inominável tinha uma missão de ceifador dos males humanos. Levava consigo os que não habitavam os preceitos condizentes com os interesses sociais.
A partir daquele momento havia o que se temer. O homem já não era único dominador da natureza. Naquele momento era integrante da gama de seres já dominados por ele. Um ser desconhecido e abominável tinha poder superior, e temer era única maneira de continuar habitando o meio. Através do medo foi possível conter o ímpeto.
A ordem se restaurou, e o ar de medo enchia o peito daquela aldeia. Ninguém mais se sentia capaz de questionar as determinações que agora eram interpretadas pelo mensageiro. Um homem comum aos demais não fosse o fato de ser o interlocutor entre a fera e os aldeões. Mas a força da mensagem que trazia criava uma áurea de temor e receio em torno de si e dos seus.
A sociedade prosperava sem equilíbrio. Aos poucos o muito, e aos muitos, pouco. Assim aqueles ao lado do mensageiro se postaram no alto da pirâmide do poder social. Nascia o extremo das classes e aflorava a essência do comportamento egoísta absoluto que reinou por tempos no seio humano.
A miséria se expandiu pelos cantos do vilarejo, enquanto os cálices de ouro tilintavam ao brinde do ancião mensageiro e seus descendentes. Criou-se um reinado de pavor que por tempos se exibia concreto.
Deu-se a existência do assombramento pacificante, agora eram reféns de uma mal possível e invisível. Não se pode subestimar o inimigo natural pelo simples fato de não conhecê-lo. Todos se postavam diante da besta julgadora.
.III.
Com o passar do tempo o regime do medo foi ganhando resistência, os outros aldeãos observando a desigualdade promovida pela fera, ou pelo temor humano, começaram a questionar a sua existência e principalmente o seu poder. A sociedade respeitava o mensageiro, mas não se unia a seus ideais. A massa não se permitia ir contra, contudo também não se associava ao governo da temeridade.
Vendo desse espaço abandonado pelo mensageiro e seu grupo bestial, um aldeão utilizando de sua astúcia promovia versos a outra entidade, que ao invés de julgar e condenar as ações dos aldeãos, promovia as bonança no seio do povo.
Então de repente o que era natural, passou a ser celestial. A chuva, o sol, a prosperidade e todas as demais situações de felicidade do individuo provinha de um ser superior ao homem e também a fera que perseguia a população.
Desse modo aos poucos a sociedade começou a rachar. A aldeia se dividiu entre os temerosos da fera, comandados pelo mensageiro, e os abençoados pelo celeste, comandados pelo representante. Ambos acusavam o outro de ilusão e desrespeito. Ambos ofereciam um caminho certo a seguir.
Contudo apenas um manteve seu posto e a o outro teve que assistir o desfacelamento de sua história. Venceu a batalha o que ofereceu conforto. O ser celeste agora era supremo, e acreditava-se que a paz reinaria naquelas terras.
Os homens embriagados com a certeza de que alguém proveria suas necessidades comemoravam a vitória dos céus, e esqueceram-se dos seus afazeres. As estações foram se sucedendo e agora toda aquela euforia se dissipando silenciosamente. Esperando que o deus bom fosse enviar o suprimento para as mazelas os aldeões se mantiveram estáticos perante a natureza, e as plantações fracassaram, e os animais se foram. A fé estava abalada, até mesmo para o representante que descobriu que sem o medo o homem não se sente devedor, e com isso não aproveitou dos benefícios de líder que haviam surgido ao mensageiro.
Dado o caos da preguiça e esperança, o representante do céu requereu a presença do mensageiro da fera, afim de um acordo. Dias depois a nova doutrina social previa que quem não se permitisse seguir os fiéis comandos do senhor celeste, haveria de pagar nas profundezas com a fera tamanho erro. O medo fora ressuscitado, e a esperança mantida.
Contudo não seria suficiente para organizar e conter a massa. Viver era uma arte que todos já haviam aprendido, e na vida o maior temor era morrer, porém morrer era o natural fim da passagem. Os homens estavam habituados com a idéia da morte. Mas não com a idéia que haveria uma recompensa ou um castigo depois dela.
A insegurança diante do receio de seu destino passou a ser o principal motivo da associação popular com o credo instaurado. A sociedade se equilibrou, os homens passaram a cumprir com seus deveres naturais e com os deveres criados pelos representantes do credo.
Agora todo aldeão devia ao desconhecido ser celeste, algo tão desconhecido quanto mesmo, a sua alma. O poder abstrato passou a reinar. E os seus interlocutores mantinham o poder de modo sustentável e seguro.
.IV.
Porém uma desgraça começou a se alojar na mente do homem. Está malévola contaminação se proliferou por várias mentes e promoveu diversas ações distintas.
O conhecimento se alastrou pelas ruas da aldeia, que se transformou em vila e progrediu a cidade. O progresso, fruto do conhecimento, permitiu que novas figuras humanas oferecessem também sua idéia ilusória de salvação. Novos deuses surgiram, para combater novos males. E o deus de um não podia conviver com o deus do outro.
Os embates foram tomando proporção e força até que o combate se tornou inevitável. A guerra se fez, e os inventos do conhecimento alimentaram a sede de sangue dos deuses humanos.
O homem se destruiu. A sociedade se desfez. Os deuses e feras retornaram a caixa de pandora da inexistência. Tudo era lembrança do apocalipse humano. A cidade se tornou pó.
.V.
Existe nos arredores das ruínas apenas uma choupana onde uma família se mantém. As crianças brincam entre as plantações, os animais soltos vagueiam pelo gramado, a mulher cuida dos afazeres e eu lhes escrevo nossa história.
Aqui em nosso éden particular foi preciso aprender a ser só no coletivo e vivo na união. Não tememos nada que não seja natural, nem tão pouco devemos a ninguém, pois o que temos é resultado de nossas ações.
As regalias que a vida nos oferece são desfrutadas de maneira intensa já que é previsível a efemeridade das coisas. As batalhas que enfrentamos são na esperança de continuarmos mais dias em comunhão. Somos um pequeno grupo de sobreviventes que se permitem apenas a certeza do presente.
Contudo não aniquilamos a fera ou o ser celeste, ambos mantemos vivos o bem e o mal, porém aprisionados em nosso interior. A verdade é singular e o respeito é à base de sustentação de minha família. Cada um cria o seu caminho. Não nos limitamos. O paraíso é coexistir na beleza da vida.