7 de outubro de 2010

Pequenos Contos Modernos - IV

¬. A Janela d'Além Horizonte
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Todos os dias lá estava ele a contemplar o cotidiano de sua rua. Ninguém o notava, ninguém o sentia, mas não havia dia, nem tempo que o impedisse de se manter concreto em sua posição. Com o busto sobre o batente de cimento e o olhar turvo atento ao que se movia. Ele estático em sua analise solitária da vida que seguia seus rumos distintos era a marca da paisagem por tantas vezes despercebida.
Mas a vida segue seu próprio caminho independente dos viventes, dentre as linhas únicas existe um emaranhado de dados que nos ligam, que nos uni, mesmo que nós não tenhamos contato. Existe na rua o tato do tempo, que nos toca provocando sensações diferentes sobre a mesma sentença. Pensando nisso um dia ele não se postou sobre o batente. E o presente parecia comum, mas havia algo de errado no percurso. Não havia o vigilante da ordem no caos, não havia a figura singular do homem que vê além daquilo que nos permitimos enxergar. Estávamos inseguros na orfandade do observador.
Passaram-se alguns dias na monotonia da incerteza do que haveria ocorrido. O velho de armações oculares sem lentes não fazia suas aparições corriqueiras, ele parecia um criminoso, um fugitivo de suas obrigações. Os outros moradores seguiam suas rotinas. As crianças brincavam, os adultos trabalhavam, os velhos seguiam seus ócios e não havia ninguém para registrar as performances sociais.
Na sua ausência então coube a cada um observar um pouco mais do que o comum. De repente eu percebi o quanto colorida era aquela rua, quantas novas crianças se espalhavam pelos gramados da praça, como os vizinhos eram pessoas agradáveis e como aquela janela estava vazia sem o olhar que outrora saboreava cada camada de cores que a rotina singela de nossa terra pode nos proporcionar.
Então deu-se o retorno. E curioso como havia ficado, na primeira oportunidade de avistá-lo, fui saber o porque de sua tão demorada ausência. Ele em sua linguagem simples e sabedoria extensa de longos dias vividos me disse:
"- Fui a capital fazer uma cirurgia nos ouvidos. Tava escutando cada vez menos do mundo. E como cego de longa data, é o ouvido que me permite perceber a sua valorosa presença toda manhã rumo aos seus afazeres, e o retorno no fim da tarde para os sorrisos de sua família."
Dei minhas boas vindas e retornei a minha rotina. Dessa vez me permiti perceber como os paralelos da rua são irregulares, como as amedoeiras da praça estão carregadas e como as pessoas podem ser interessantes. Eu segui meu rumo de olhos abertos.

Um comentário:

Alexsandra disse...

Essa leitura nos faz refletir e saber que possuimos os sentidos "perfeitos" e não fazemos o melhor uso deles. Devemos ver e enxergar, escutar e ouvir, tocar e sentir, etc e tal. Ameeeeeeei!!!!